Dos poderes que nos atravessam e que atravessamos, dos instrumentos de domínio e de controlo, dos sistemas que nos definem, debruçamo-nos aqui sobre dois, o heteropatriarcado e a linguagem, e sobre o seu encontro. O heteropatriarcado; regime da estrutura social, que define a família nuclear e diz da poliparentalidade problemática, regulador de relações, que diz da promíscua porca e do promíscuo vencedor, criador de sentimentos e de sexualidades, que diz dx assexual anormal e embeleza a agressividade da hipersexualização comercial. Impõe uma norma ao desejo sexual, às categorias da amizade e do amor, ao comportamento do corpo e sua fenomenologia, constrói a mulher e o homem e subordina a primeira ao segundo, nem reconhece x trans; no fundo, não reconhece ninguém. Constrói o género pelo sexo, e até o sexo pelo regime. Ontologiza as personalidades pela ilusão da solidez do sexo como ponto arquimediano, e cristaliza as relações entre elas. Deu ao género uma lógica binária: tertium non datur.
Por outro lado a linguagem, o poder de dizer, definidora do como se diz limita o que pode ser dito. Estabelece-se hoje com uma orthographia e uma orthologia; ortho, de correcto, ortho, de certo, ortho, de norma, ortho, de lei. Ortho, autoridade. A linguagem serve a sociedade em que o que é considerado tem de ter a propriedade de narrável. É toda a comunicação, tenta ser toda a partilha. Apalavrar a vida, espetáculo oral.
Nas multiplicidades, nas pluralidades, nas imanências descentralizadas destes poderes o seu cruzamento dir-se-ia inevitável. E pede-se um olhar sobre esse encontro. Reflectir sobre um poder que pode não ser simplesmente a adição dos dois referidos, mas antes adquirir propriedades emergentes, não-lineariedade. Urge a construção de novas armas de subversão, principalmente se reconhecermos a importância da linguagem.
Mas há muito que esta é reduzida à sua natureza comunicativa, e por esta perspectiva a reivindicação de uma expressão oral e escrita feminista é vista como mero capricho, algum tipo de fetichismo radical que, pela censura da palavra, exprime a angústia da opressão. Só que a linguagem não é apenas comunicação, não funciona somente num plano da relação dos entes, não pode ser empurrada para um território paralelo ao das vivências concretas. Onde a linguagem foi tornada fluxo platónico é necessário trazer de volta a sua materialidade. Porque a linguagem existe, é concreta. Ela não é apenas comunicação, mas também experiência. Experienciamos o dizer, o ilustrar, o exemplo, e podemos até comunicar sobre a comunicação. A teoria que faz dela passagem de conteúdo falha por não reconhecer o conteúdo que é a própria passagem, e a passagem que é o próprio conteúdo. Assim, a linguagem não funciona no terreno neutral da transmissão de percepção, tanto quanto tem a potência de alterar a própria percepção, de abalar e confundir-nos no que tomamos por certo, ou, se pelo contrário cristalizar, o poder de criar o óbvio, o indubitável.E é face a este papel da linguagem, que encontramos como tecido político, como construtor do mundo para além do comunicador deste, e que, numa perspectiva geral de análise política, encontramos como perpetuador do status quo, que emerge a urgência de uma nova prática linguística, escrita e oral, e, com ela, de uma nova prática de pensamento.
As bases conceptuais das quais partimos dariam, deste tecido, pano para mangas em todos os esquemas interpretativos que são hoje hegemónicos; mas, como referimos, cingimo-nos aqui a questões de identidade de género e ao combate à sociedade heteropatriarcal. Deparamo-nos então, neste debruçar, com as regras de género do plural e com o binarismo de género instituído, com o ortho que regula simultaneamente que numa assembleia com 300 mulheres e um homem se deve falar de “todos os participantes” e que nem tenhamos pronome para alguém que não se identifica nem como homem nem como mulher, com a sua extensão da ciência à filosofia, nunca ouvindo falar de Mulier sapiens ou classificando uma falácia como Ad Transgenerem, com a cristalização institucional de uma “forma normativa de fala e de escrita” que ao nível cognitivo dilui da história todas as pessoas não-homens quando fala “dos cientistas”, “dos pensadores”, “dos filósofos”, “dos guerrilheiros”, mas que ao falar de “pais” pensa um homem e uma mulher, e que cria uma prática de lecto-escritura em que a tradução de “translator” é por default “tradutor”, ignorando o género de quem praticou o acto. E ao concretizarmos a prática deste ortho vemos, mais claramente, essa mesma faceta da construção do mapa conceptual heteropatriarcal pelo qual nos regemos no dia-a-dia.
É preciso então reinventar a linguagem. E não reinventar uma linguagem, mas antes a linguagem ela. Conseguir exprimir, pela linguagem, uma nova natureza de si mesma. Não se trata, pois, de criar uma nova norma, de dizer como todxs devem escrever daqui para a frente, de instituir o novo orthos, de erguer um fascismo linguístico. Foi isto que aprendemos com o queer: as novas normas que criarmos viverão da sua contingência, a sua necessidade surge do contexto, a sua arte é a não estagnação. Poder criar da subjectividade, sem cair numa relativização que valide o instituído. Liberar a palavra.
O compromisso brincalhão que aceitamos é o de abanar os alicerces da orthographia e da orthologia. Que nasçam novas praxes por todos os lados, por todos os cantos, um avé aos cogumelos linguísticos. Que se pratique o duplo plural ora em constância, referindo sempre “todos e todas”, ora em alternância, usando também “todas” como plural genérico; que se aplique a arroba quando se quiser considerar dois géneros sem repetir a palavra, falando de “velh@s”; que se comunique sem género, onde ainda não foi incrustado; que se criem palavras onde não existiam, falemos “da Presidenta”; que se faça do incómodo X, ou do silencioso *, motivo de conversa, de debate, de desestagnação, falando “dxs pessoas”, “dxs prostitutxs”, ou grafando “tod*s *s estudantes”; que se parta os joelhos ao “Homem” como símbolo da humanidade e se fale “da Mulher”, ou “dx Trans”; ou que se torne caótica a representação de género, que se deixe explícita a discordância que quiseram apagar do exprimível, falando “da rapaz”, “do diva”; que o façamos mesmo no traduzir, reconhecendo o processo instituído tão político quanto o nosso. Onde a linguagem congelou, façamo-la arder; onde o solo enrijeceu, proliferem os cogumelos linguísticos de todas as formas e feitios, de todas as famílias.
Usemos a queerografia. Enfrentemos o academicamente correcto com a confiança no erro, o ortho com a desnaturalização, o ponto com a translação, a autoridade com um carnaval linguístico. Deparar-nos-emos com a oposição do estabelecido, com a obsclareza do regrado, veremos trabalhos corrigidos por professorxs onde a correcção a tínhamos feito nós, artigos recusados, censurados, expressões segregadas, desautorizadas. Onde reina a calma o nosso objectivo será o caos, a confusão. É essa confusão o terreno fértil das construções, ninguém sobrevoa de pés no chão.
É este o nosso acordo brincalhão: assumir a seriedade da existência camuflada. Nós, abaixo-assinadas, pensamos novas falas e novas escritas, e escrevemos e falamos novos pensamentos.
Assinar (escreve o teu nome como o queres publicado):
Pedro Alves Feijó
Simão Cortês
David Pinto
Alistair Grant
Sofia Lopes
Daniel Cardoso
Magda Alves
Gil Jorge Barros Henriques
Filipa Nunes
paulo jorge vieira
Ângela Fernandes
Susana Mesquita de Deus Correia
Louren Ço
Inês Felizardo
Sérgio Pedro
João Santos
Ana Rita Seara
João Carlos Louçã
Nuno Bio
Diogo Duarte
Fernando André Rosa
Miguel Carmo
Inês Godinho
Irina Passos Natário de Castro
Bruna Oliveira Lopes
Érica Almeida Postiço
Rui Ruivo
Nélson Ramalho
André Lopes
Anabela Rocha
Luís Fernando Fernandes Pinto Cardoso
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Sara Marina Vasconcelos Barbosa
kate falcão
Catarina Pombo Nabais
Adriana Delgado
Mariana Pinho
João Berhan
Mi Martinho Guerreiro
Filipa Pedroso
Joana Afonso
Inês Vegetal
Helena Cruz
Catarina Rodrigues
Vera Palos
Luís Araújo
Inês Margarida Loureiro Gaio
Sérgio Vitorino
João Edral
joao
José Nuno Matos
Rita Gomes
Susana Delgado
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Ricardo Emanuel de Oliveira Russo
Joana Tavares
Emerson Almeida
Helena Lopes Braga
Maria Olímpia Pinto
Rui Coelho
Helena Costa
Ana Oliveira
Cláudia Teles
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Cláudia Nogueira
Ana Ferreira
nicolaualves
José Manuel Canelas
stefania barca
Catarina Leal
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Patrícia Jorge
Miguel Sacramento
Sara Oliveira
Ricardo Sequeiros Coelho
Mariana Santos
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Marco Caperino
Patrícia Jorge
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Claúdio Vieira
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Fernando Duarte
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